Fisiopatologia incontinência urinária feminina
Os fatores fisiológicos envolvidos na continência urinária
envolvem tanto mecanismos de controle centrais quanto periféricos. Os
mecanismos centrais incluem informações processadas no córtex cerebral, tronco,
ponte e segmentos torácicos e sacrais da medula espinhal e exercem suas ações
através da inervação somática e autonômica para o trato urinário inferior. Os
mecanismos periféricos que interferem e colaboram na continência urinária são
as estruturas que compõem o trato urinário inferior (bexiga e uretra), bem como
a musculatura, fáscias e ligamentos do assoalho pélvico. A continência urinária
é o resultado de uma complexa inter-relação entre estes dois mecanismos.
A parede vesical é composta por camadas de musculatura lisa
formando o músculo detrusor. A presença desta musculatura lisa no colo vesical e
na uretra proximal forma o esfíncter interno, o qual é circundado por
musculatura estriada chamada de rabdoesfíncter. A musculatura estriada
parauretral (músculos do assoalho pélvico) e o rabdoesfíncter
constituem o esfíncter uretral externo.
A uretra e a bexiga funcionam de forma recíproca. Durante o
enchimento vesical o músculo detrusor permanece inativo, com mínimas modificações
na pressão intravesical, adaptando-se ao aumento progressivo de volume através do
aumento do comprimento de suas fibras. Neste momento as vias neuronais que
estimulam a micção permanecem quiescentes, estando às vias inibitórias ativas
nesta fase. A uretra permanece fechada, com aumento progressivo do tônus da
musculatura lisa e do esfíncter estriado externo.
Ao atingir um volume crítico o esfíncter externo se relaxa e
o músculo detrusor inicia uma série de contrações, o colo vesical se abre e a micção
se processa de forma sincronizada. Este processo na primeira infância ocorre de
forma involuntária, mas a partir da aquisição da consciência de enchimento
vesical e da inibição voluntária da micção, esta contração detrusora passa a ser
adiada e controlada, e a continência mantida. Desta forma o ciclo funcional do
aparato vesico-esfincteriano é uma combinação única e uma interação extremamente
coordenada entre funções voluntárias e autônomas.
O trato urinário inferior é inervado pelo sistema nervoso
autônomo (parassimpático e simpático) e sistema nervoso somático, um conjunto intricado
de nervos aferentes e eferentes derivados do sistema nervoso central. Este
complexo circuito neural atua por meio da integração de reflexos que permitem
atuação tanto para armazenar, garantido continência, quanto para eliminar de
forma a não permitir resíduos.
Este sistema neuromuscular pode ser alterado por diferentes
fatores, tanto a nível central quanto periférico. Desta forma, lesões cerebrais
ou medulares das mais diversas são responsáveis por mudanças na fisiologia da
unidade vesico-esfinteriana, originando disfunções miccionais neurogênicas e
miogênicas que, em última análise, têm o sintoma incontinência urinária como uma
de suas principais manifestações. O quadro mais comum nesta situação é a bexiga
hiperativa, que se manifesta de forma geral por urge-incontinência.
Outros fatores também contribuem para modificações na
anatomia e fisiologia do trato geniturinário feminino, como a gravidez, o parto
vaginal, o hipoestrogenismo, a obstipação crônica, entre outros. Estes fatores
estão relacionados ao surgimento de deficiências do aparato que proporciona
sustentação das estruturas pélvicas femininas e à insuficiência esfincteriana,
levando aos prolapsos pélvicos e à incontinência urinária de esforço (IUE).
Incontinência
Urinária de Esforço
A evolução do entendimento da fisiopatologia da IUE ao longo
do tempo deveu-se muito ao surgimento de novas metodologias de investigação e
diagnóstico deste problema, as quais revelaram novas evidências que modificaram
teorias vigentes da etiologia da IUE. Em alguns
casos estas novas informações inclusive contradiziam conhecimentos
prévios.
Ao longo do último século várias teses surgiram na tentativa
de explicar a incontinência urinária de esforço feminina. Tais teorias se
baseavam no entendimento dos mecanismos de continência urinária em cada momento
histórico, e apesar de diversas hipóteses terem surgido a respeito da sua
etiologia, duas principais dominaram a literatura médica: uma relacionada a um
suporte insuficiente ou patológico da parede vaginal anteuretral intrínseca.
Vários métodos de tratamentos e procedimentos cirúrgicos foram propostos baseados em suas
explicações teóricas.
Entretanto, apesar destas duas teorias principais terem sido
exaustivamente estudadas ao longo do tempo e inclusive subdivididas para uma
melhor compreensão, infelizmente ainda não dispomos de um completo conhecimento
da anatomia da uretra e suas estruturas circunvizinhas, bem como um
entendimento satisfatório da fisiologia do intricado mecanismo esfincteriano
pelo qual a continência urinária é mantida, podendo-se afirmar que a etiologia
da IUE ainda é indefinida e certamente multifatorial.
O complexo vesico-esfincteriano feminino, até pela sua
própria conformação anatômica, é exposto a uma série de fatores durante a vida que
impõe um maior risco de incontinência urinária que o masculino. São relatados
fatores que predispõe (genética, raça, colágeno), promovem (estilo de vida,
nutrição, obesidade, tabagismo, menopausa, constipação e medicações),
descompensam (envelhecimento, imobilidade física, doenças degenerativas) e
incitam (gravidez, parto vaginal, cirurgias vaginais, lesão muscular e radiação).
A interação destes fatores, em maior ou menor grau, lesa o mecanismo
esfincteriano e está associado ao surgimento de IUE. As principais teorias que
tentam explicar a fisiopatologia da IUE são descritas a seguir:
Teoria das Alterações
do Eixo Uretrovesical e Posicionamento Uretral
As teorias iniciais sobre a IUE refletiam o conhecimento do
início do século passado que era basicamente ancorado por estudos anatômicos e
por observações epidemiológicas dos fatores de risco relacionados à
incontinência urinária. Assim, os primeiros autores focaram sua atenção em
alterações do colo vesical, na falta de compressão anatômica uretral e em um
mau posicionamento da uretra.
Em 1913, Kelly atribui a IUE a um afunilamento do colo
vesical, o qual ele hipotetizou ser causado por perda da elasticidade ou tônus normal
do esfíncter uretral e vesical, levando a um colo vesical aberto. Para corrigir
este problema ele sugeria a sutura dos tecidos relaxados ao nível do colo
vesical, surgindo assim uma técnica cirúrgica que perdura até os dias atuais.
Algum tempo depois, em 1923, Bonney descreveu suas
observações clínicas, enfatizando o achado da perda urinária estar associada a manobras
de esforço e ser mais frequentemente observada em mulheres multíparas. Em seus
estudos baseados em anatomia cirúrgica descreveu a IUE como associada a uma
perda do suporte anatômico uretral, levando a um deslocamento da junção
uretro-vesical inferiormente à sínfise púbica. Esta alteração do posicionamento
seria fundamental para a instalação do quadro clínico.
Bonney descreveu inclusive diferentes pontos de perda de
suporte da parede anterior vaginal (superior, médio e inferior), destacando que
apenas deficiência da parte distal levava à IUE. Suas descrições detalhadas
foram a base para as diversas teorias subseqüentes sobre falha anatômica como
fator associado à IUE.
Tais teorias foram questionadas por vários autores ao longo
dos anos. Em um estudo com 84 mulheres incontinentes, Fantl observou que o eixo
uretral em repouso e durante o esforço não era diferente entre mulheres
continentes e incontinentes e que várias mulheres continentes apresentavam um
deslocamento inferior da junção uretro-vesical.6 Outros questionaram a
influência do colo vesical aberto na gênese da IUE. Versi et al observaram que
51% das mulheres climatéricas continentes apresentavam colo vesical aberto na vídeo-urodinâmica.
Achado ultrassonográfico de colo vesical aberto em 21% de mulheres nulíparas e
continentes corroboraram esta observação. Estes estudos sugerem que o esfíncter
uretral distal é mais importante do que o colo vesical ou o esfíncter interno
na manutenção da continência feminina.
Teoria das Alterações
na Transmissão de Pressões
O desenvolvimento da manometria acoplada à cistografia
convencional permitiu o estudo das pressões vesicais e uretrais no momento do
esforço. Utilizando esta ferramenta, Barnes teorizou que a IUE surgia ou por
aumento das pressões vesicais ou por diminuição do poder de resistência e ação
do esfíncter, ou por uma associação de ambos mecanismos.9 Utilizando este preceito,
no início da década de 60, Enhorning desenvolveu um cateter uretral com
possibilidade de registro simultâneo de pressões vesicais e uretrais.
Com tal tecnologia, este autor demonstrou que em mulheres
continentes a pressão uretral excedia a pressão vesical, tanto durante o
repouso quanto em momentos de aumento de pressão intra-abdominal. Ele
hipotetizou que este aumento era por transmissão da pressão intra-abdominal para
a bexiga e parte da uretra proximal acima do assoalho pélvico.
Este autor concluiu dos seus estudos que para manter a
continência urinária a uretra deve estar localizada acima do assoalho pélvico
de tal forma que a pressão transmitida para a bexiga seja igualmente
transmitida para a uretra, causando um aumento compensatório na pressão de fechamento.
Esta teoria da fisiopatologia da IUE prevaleceu até final dos anos 70.
Com o uso cada vez mais comum da urodinâmica, posteriormente
alguns investigadores sugeriram que a fisiopatologia da IUE incluía alguns outros
fatores urodinâmicos que não somente uma má transmissão de pressão para a
uretra.
Outros parâmetros como a pressão máxima de fechamento
uretral e o comprimento uretral funcional também eram importantes. Além do mais
outros autores observaram que apesar de uma pressão de transmissão menor que
90% apresentar elevados valores de sensibilidade e valor preditivo positivo
para o diagnóstico de incontinência urinária, apresentava uma especificidade de
apenas 56%, refletindo o fato de que muitas mulheres continentes têm também
diminuição de transmissão de pressão.
Teoria da Disfunção
Esfincteriana
Em 1976 um novo conceito a respeito da fisiopatologia da IUE
foi introduzido por McGuire. Segundo este autor as alterações em ângulos
uretrais e posicionamento uretral não explicavam todos os casos de IUE,
introduzindo o conceito de deficiência uretral intrínseca após estudos do
efeito da rizotomia sacral na função vesical e uretral. Este autor observou que
mesmo realizando rizotomia, o que levava à denervação do esfíncter uretral
externo e da musculatura esquelética para-uretral, não havia mudança na pressão
uretral de repouso ou na função do músculo liso uretral e que as pacientes não
desenvolveram IUE, confirmando a importância da musculatura lisa na manutenção da
continência urinária.
Tal achado foi confirmado por estudos neurofisiológicos do
assoalho pélvico em mulheres incontinentes que demonstraram sinais de
denervação pudenda, o que sugeria uma etiologia neurogênica da IUE e não
somente um problema de transmissão inadequada de pressões. Esta observação
reforçou a importância da integridade estrutural da uretra na manutenção da continência
e explicava porque algumas mulheres submetidas às cirurgias retropúbicas de
reposicionamento uretral permaneciam com IUE.
O surgimento desta nova teoria parecia ser incompatível com
as teorias vigentes até então que enfatizavam uma deficiência na transmissão de
pressões como primordial para o surgimento da IUE. Para resolver este dilema os
autores estabeleceram a deficiência esfincteriana intrínseca como um subtipo da
IUE, onde o esfíncter uretral era deficiente e incapaz de gerar resistência
suficiente para reter a urina durante momentos de esforço.
Vários fatores de risco para a deficiência esfincteriana
intrínseca foram propostos e sua apresentação clínica evidenciada por
diferentes meios. Assim uma baixa pressão de fechamento uretral, uma baixa
pressão de perda sob esforço ou uma uretra fixa com colo não móvel e aberto à
fluoroscopia passaram a ser utilizados como parâmetros clínicos de deficiência
esfincteriana intrínseca.
Levando em conta o parâmetro de pressão de perda sob
esforço, McGuire propôs uma classificação que considerava valores abaixo de 60
cmH²0 como consequência de deficiência esfincteriana intrínseca. Pacientes com
pressão de perda acima de 90 cmH²0 eram consideradas como portadoras de IUE
secundária a causas anatômicas (hipermobilidade) e pacientes com valores
intermediários como uma combinação de defeitos anatômicos e deficiência
intrínseca.
Esta dicotomização da etiologia da IUE entre falha do
suporte anatômico e deficiência do esfíncter uretral validou tanto as teorias
anatômicas quanto funcionais, tornado-as mutuamente exclusivas e estimulou uma
prática clínica já vigente de se indicar as suspensões retropúbicas para
pacientes com falha do suporte uretral e as cirurgias de sling para pacientes
com falência esfincteriana, algo que perdurou até bem recentemente.
Teoria “hammock”
Em 1994 Delancey introduziu uma nova teoria que tentava
combinar perda do suporte uretral e disfunção esfincteriana. Baseado em estudos
cadavéricos, Delancey descreveu a uretra como repousando em uma camada de
suporte da fáscia endopélvica e da parede vaginal anterior.
Esta camada é estabilizada através de suas conexões com o
arco tendíneo e a musculatura do assoalho pélvico. Este autor hipotetizou que a
fáscia pubo-cervical fornece um suporte do colo vesical à maneira de uma rede
(hammock) e assim cria um anteparo para a compressão da uretra proximal durante
aumentos da pressão intra-abdominal.
Neste momento, esta pressão seria transmitida para o colo
vesical e uretra proximal, resultando em fechamento uretral, pois a uretra seria
comprimida contra um suporte rígido da fáscia pubo-cervical e parede vaginal
anterior. A perda deste suporte comprometeria uma transmissão igualitária das
pressões intra-abdominais. Esta parte da teoria combina as teorias de Bonney e Enhorning.
Por outro lado, a disfunção neuromuscular também foi
abordada em sua teoria. Segundo Delancey, existem conexões da fáscia
pubo-cervical com inserções da musculatura levantadora do ânus ao nível da
sínfise púbica. Ele hipotetizou que esta conexão com a musculatura do assoalho pélvico
permitiria elevação ativa do colo vesical durante sua contração, ajudando no
mecanismo de continência. Uma deficiência muscular secundária a lesão neuronal
comprometeria este mecanismo auxiliar.
Teoria Integral
Em 1990 Petros e Ulmsten propuseram uma teoria que
explicaria ao mesmo tempo tanto a IUE quanto a urge-incontinência. Esta teoria leva
em conta a inter-relação das estruturas envolvidas no mecanismo de continência,
bem como os efeitos da idade, hormônios e tecidos cicatriciais locais. Segundo
estes autores, os sintomas de IUE e urge incontinência derivam, por diferentes
razões, de uma frouxidão anatômica na parede vaginal anterior por defeitos da
própria parede vaginal ou dos ligamentos, fáscias e músculos que a sustentam.
De acordo com esta teoria, esta frouxidão da parede anterior
da vagina ativaria receptores de distensão no colo vesical e uretra proximal, desencadeando
um reflexo miccional inadequado, resultando em hiperatividade detrusora e
urgência miccional. Da mesma forma haveria surgimento de IUE por uma dissipação
das pressões de fechamento uretral, pois sob circunstâncias normais o músculo
pubococcígeo levanta a parede anterior da vagina, comprimindo a uretra e fechando
o colo vesical, impedindo perdas. Frouxidão do ligamento pubo-uretral e da
parede vaginal anterior causariam hipermobilidade uretral e dissipação de
pressões, levando à IUE.
A introdução desta teoria levou a uma nova geração de
procedimentos anti-incontinência, com o surgimento dos slings de terço médio uretral
sem tensão (TVT), que reforçam o terço médio da uretra substituindo o ligamento
pubouretral deficiente, que pela facilidade técnica associada a elevados
índices de sucesso, tornaramse o procedimento mais comumente utilizado nos dias
atuais.
Conclusão
Anos de estudos e pesquisas sobre a fisiopatologia da IUE
demonstraram que, semelhante à fisiologia do mecanismo de continência urinária,
trata-se de um assunto complexo e indefinido. A apresentação clínica e todo o
contexto que envolve o seu surgimento não podem ser explicados por um único
fator ou teoria. A IUE deve ser vista como um problema resultante de uma
associação de fatores que, atuando de forma conjunta, levam a este quadro
clínico.
No último século muito se progrediu no conhecimento da
fisiopatologia da IUE. Novas tecnologias permitiram um aprofundamento no entendimento
do mecanismo de continência urinária, fazendo surgir teorias que evoluíram de
um contexto meramente anatômico, para uma conjunção de fatores anatômicos e
funcionais diversos. Assim, ao manifestar uma incontinência urinária de
esforço, múltiplos aspectos do mecanismo de continência urinária podem estar
alterados e a correção de apenas um fator poderá ser insuficiente para curar a paciente.
No presente momento, novos métodos de investigação dos
circuitos neurais envolvidos no controle urinário têm sido estudados. Recentes pesquisas
têm procurado estabelecer modelos experimentais de IUE e antigos parâmetros
urodinâmicos têm sido questionados, existindo uma tendência mundial de
transformação do seu tratamento em procedimentos minimamente invasivos e
rápidos.
Fonte: Urofisioterapia - Pedro Luiz Nunes e Julio Resplande