Mielorradiculopatia esquistossomótica (MRE)
A mielorradiculopatia
esquistossomótica (MRE) é a forma ectópica mais grave e incapacitante da
infecção pelo Schistosoma mansoni, porém sua prevalência em áreas endêmicas tem
sido subestimada. O reconhecimento dessa doença e a instituição precoce do
tratamento desempenham papel fundamental na prevenção de lesões graves e
irreversíveis, assim como na recuperação das pessoas acometidas, em geral
jovens em plena fase produtiva.
O diagnóstico se baseia na
presença de sintomas neurológicos decorrentes de lesões da medula espinhal, na
demonstração da infecção esquistossomótica por técnicas microscópicas ou
sorológicas e na exclusão de outras causas de mielopatia. Geralmente, a doença
se apresenta com uma tríade clínica prodrômica de dor lombar, alteração de
força e/ou sensibilidade de membros inferiores e distúrbio urinário. Esses
sinais e sintomas devem servir de alerta para os profissionais de saúde. Como o
diagnóstico é presuntivo e o tratamento essencialmente clínico, há que se
manter alerta para a presença da doença, aperfeiçoar a propedêutica e, dessa
forma, evitar-se a laminectomia rotineira. Com o advento de novas técnicas
complementares, especialmente as reações no líquido cefalorraquidiano e os
exames por imagem da medula espinhal, houve grande avanço no diagnóstico da
esquistossomose medular. Como consequência, o número de casos de MRE relatados
tem aumentado rapidamente (ANDRADE FILHO et al., 1996; CAROD-ARTAL et al.,
2004; PEREGRINO et al., 2002a).
Trata-se, portanto, de uma doença
subnotificada, de prevalência desconhecida e morbidade subestimada. A
dificuldade do reconhecimento do quadro clínico e a limitação de acesso aos
métodos complementares diagnósticos contribuem para o subdiagnóstico da MRE,
acarretando sequelas graves para os portadores da doença e ocultando sua
importância epidemiológica.
Patogenia
A patogenia da mielopatia
esquistossomótica permanece desconhecida, porém admite-
se que a resposta inflamatória do
hospedeiro aos ovos presentes no tecido nervoso constitua o principal
determinante das lesões do SNC (SILVA et al., 2004a).
A resposta inflamatória pode
variar de reação intensa do hospedeiro, resultando em granulomas ou massas
expansivas, até reação mínima sem expressão clínica. Em alguns casos
necropsiados, encontram-se ovos no tecido medular sem qualquer reação
inflamatória. A contribuição de um processo auto-imune disparado pela infecção
esquistossomótica, provocando vasculite e isquemia, também deve ser admitida,
mas faltam dados que confirmem tal hipótese. A deposição assintomática de ovos
de S. mansoni, tanto no encéfalo como na medula espinhal, revelou-se mais comum
do que a forma sintomática da doença.
A mielorradiculopatia ocorre com
maior frequência nas formas aguda e intestinal crônica da verminose. Os ovos e
os vermes podem deslocar-se pelo plexo venoso vertebral epidural de Batson,
avalvular, que conecta o sistema portal e a veia cava às veias do canal
espinhal. Dessa forma, os ovos atingem o SNC mediante a oviposição local ou por
embolização. A maior incidência da mielopatia na região lombosacra explica-se,
provavelmente, por esse mecanismo de migração. Além disso, estudos de
necropsias mostraram que os ovos de S. hematobium são mais frequentemente depositados
no cérebro do que os ovos de S. mansoni. Os ovos desta última espécie são
maiores que os de S. hematobium (155 x 66 μm em comparação com 143 x 55 μm) e
foi sugerido que a espícula lateral do ovo do S. mansoni pode também impedir
sua progressão pelos vasos sanguíneos. Essas são hipóteses aventadas para justificar
a tendência ao alojamento dos ovos de S. mansoni nas regiões mais baixas do plexo
venoso vertebral.
Quadro clínico
A MRE pode se manifestar sem
história clínica prévia ou diagnóstico de doença esquistossomótica ou mesmo
muitos anos após o desaparecimento de manifestações intestinais da infecção
pelo parasita. Eventualmente, pode se associar a outra forma ectópica da esquistossomose.
Geralmente acomete indivíduos com a forma intestinal da doença
esquistossomótica, mas há relatos de MRE em pessoas portadoras da forma
hepatoesplênica da verminose (SILVA et al., 2004a).
Inicialmente, a MRE se manifesta
mais frequentemente como uma tríade prodrômica caracterizada por dor lombar (em
97,5% dos casos), alterações de sensibilidade de membros inferiores (97,5%) e
disfunção urinária (96,2%). Com a evolução da doença, seguem-se fraqueza de
membros inferiores e impotência sexual (PEREGRINO et al., 2002a). Essas
manifestações neurológicas surgem de forma aguda ou subaguda, com piora
progressiva e acumulativa de sinais e sintomas, instalando-se o quadro clínico
neurológico completo geralmente em 15 dias.
Ocasionalmente, essa evolução pode
ser lenta e ocorrer ao longo de meses e anos. Em alguns casos, a dor lombar ou em
membros inferiores regride ou desaparece à medida que os outros sinais e
sintomas vão surgindo ou se tornando mais evidentes. Observa-se, eventualmente,
melhora clínica espontânea. Quando ocorre, entretanto, há recorrência das
manifestações neurológicas. Alguns autores sugerem que o aumento da pressão intra-abdominal
por esforço físico ou trauma pode desencadear a MRE.
Na tabela 1, alinham-se as
manifestações clínicas observadas após a evolução completa do quadro neurológico.
A área da lesão, definida pelo
exame neurológico, localiza-se, com frequência, nas regiões torácica baixa ou
lombar da medula espinhal, na cauda equina ou no cone medular. Há casos
relatados, confirmados pela histologia, de lesões esquistossomóticas isoladas
da medula cervical e do cerebelo (BRAGA, COSTA JUNIOR, LAMBERTUCCI, 2003;
SILVA, KILL, LAMBERTUCCI, 2003). Paraplegia com flacidez e arreflexia, retenção
urinária e redução da sensibilidade tátil, térmica e dolorosa do tipo radicular
dominam o quadro clínico quando o cone medular e a cauda equina encontram-se
acometidos. Espasticidade, alteração da sensibilidade superficial do tipo nível
segmentar e incontinência urinária ocorrem em vigência de acometimento mais
alto da medula. De maneira geral, a paraparesia bilateral e os reflexos profundos
abolidos ou reduzidos constituem os achados mais frequentes ao exame neurológico.
A assimetria das alterações motoras e/ou sensitivas, consequência do acometimento
das raízes nervosas, deve sempre fazer pensar em MRE.
Os profissionais da área da
saúde, principalmente médicos de pronto-socorros, urologistas, ortopedistas,
pediatras, clínicos gerais e fisioterapeutas devem estar atentos à doença. Eles
frequentemente atendem os portadores de MRE no início da sintomatologia, muitas
vezes com o exame neurológico ainda normal, apresentando apenas a tríade
clínica prodrômica de dor lombar, parestesias de membros inferiores e distúrbio
urinário.
Diagnóstico diferencial
O diagnóstico diferencial da MRE
inclui: mielites bacterianas ou virais (HIV, HTLV ou herpes vírus, sífilis,
abscessos medulares, tuberculose e mielopatia associada ao vírus B da hepatite),
hérnia discal lombar, esclerose múltipla, trauma medular, injeção intratecal, radiação,
tumores, deficiência de vitamina B12, síndrome antifosfolípide, vasculite diabética
ou autoimune, siringomielia e neurocisticercose.
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