Ataxia cerebelar hereditária
Ataxia é um termo que
literalmente significa desordem ou confusão. O termo ataxia locomotora tem sido
empregado desde o século XIX, significando mais comumente incoordenação motora [HARDING,
1984; KLOCKGETHER, 2000 a]. As ataxias podem ser classificadas em:
cerebelar, quando há comprometimento do cerebelo e de suas projeções aferentes
e eferentes; ataxia sensitiva, quando existe o comprometimento da via da
sensibilidade proprioceptiva; ataxia frontal, uma forma rara de ataxia com comprometimento
do lobo frontal (via cerebelo-frontal), e ataxia vestibular, decorrente da
disfunção labiríntica e de existência controversa [HAERER,
1992].
A ataxia sensitiva é
reconhecida clinicamente pela presença do sinal de Romberg, dos sinais de
comprometimento da sensibilidade profunda (sensibilidade vibratória e noção de
posição segmentar) e pela marcha do tipo talonante. A forma de ataxia frontal,
descrita por Bruns, em pacientes com lesões expansivas de lobo frontal, e
caracterizada por um desequilíbrio acentuado (desequilíbrio frontal), é, em verdade,
uma apraxia de marcha e geralmente está associada à presença de outros sinais
frontais (cognitivos, bexiga neurogênica e os conhecidos sinais de liberação do
lobo frontal) [HAERER, 1992; MARSDEN & THOMPSON, 1997].
A forma mais conhecida, a
ataxia cerebelar, representa uma síndrome composta pela presença de inúmeros
sinais e sintomas caracterizados pelo comprometimento do vermis cerebelar
(anormalidades de equilíbrio, marcha, titubeação e distúrbios do movimento
ocular extrínseco) e dos hemisférios cerebelares (com anormalidades do
equilíbrio e da marcha, dos movimentos oculares, dismetria, decomposição do
movimento, disdiadococinesia, tremor, disartria, hipotonia e fenômeno do
rebote) [HAERER,
1992; GILMAN, 1997; KLOCKGETHER, 2000 a; PAULSON & SUBRAMONY, 2002;
PERLMAN, 2003].
Os principais sinais da
síndrome clínica de ataxia cerebelar são: ataxia de marcha (marcha ebriosa, ou
desequilíbrio com a avaliação por meio da “tandengait”), dificuldade de
equilíbrio estático com os olhos abertos (distasia, astasia) e fechados
(definido como Rombergismo), ataxia apendicular (caracterizada pela presença de
dismetria, disdiadococinesia e decomposição de movimentos), disartria (fala
escandida), hipotonia muscular, fenômeno do rebote (manobra do rechaço de Stewart-Holmes),
distúrbios do movimento ocular (nistagmo, anormalidades dos movimentos
sacádicos e de perseguição ocular), tremor (intencional e cinético) e presença
de disfunção cognitiva.
As ataxias cerebelares (AC)
podem ser classificadas em primárias, incluindo os subtipos AC-Plus e
Hederodegenerativas, representadas pelos quadros de ataxias congênitas e
hereditárias (autossômicas recessivas, dominantes, ligadas ao cromossoma X e
mitocondriais), e ataxias secundárias, ou adquiridas, como as decorrentes do
comprometimento do cerebelo e suas conexões, por doenças como a esclerose
múltipla, tumores, doença vascular encefálica, drogas, infecções, além de síndrome
paraneoplásicas, doenças endócrinas e doenças auto-imunes [HARDING,
1984; PAULSON & SUBRAMONOY, 2000; KLOCKGETHER, 2000; SUBRAMONY, 1998a,
1998b; SUBRAMONY & FILA, 2002].
Ataxias
hereditárias
As ataxias hereditárias (AH)
correspondem a um extenso grupo de enfermidades neurodegenerativas heterogêneas
que apresentam algumas características em comum, quais seja a presença de
ataxia, uma herança genética, e o processo degenerativo envolvendo o cerebelo e
suas conexões aferentes e eferentes. Outras estruturas do sistema nervoso
costumam estar acometidas, incluindo os núcleos da base, núcleos do tronco
encefálico, tratos piramidais, colunas posteriores, além do corno anterior da
medula espinhal [ROSENBERG & GROSSMAN, 1989; SUBRAMONY
1998; BRESSMAN ET al., 2000; EVIDENTE et al., 2000; DURR & BRICE, 2000;
SUBRAMONY & FILLA, 2001, 2002; PAULSON & SUBRAMONY, 2002; KLOCKGETHER,
2000 a,b; PULST, 2003 a].
As AH apresentam grande
heterogeneidade genotípica e também fenotípica. A heterogeneidade fenotípica
implica que o mesmo genótipo pode determinar vários fenótipos diferentes, e a
heterogeneidade genotípica determina que o mesmo fenótipo pode ser decorrente
de vários genótipos [COUTINHO,1992; HAMMANS, 1996; SCHÖLS et al., 1997;
ALBIN, 2003].
A prevalência de AH, tanto
do tipo autossômicas recessivas, dominantes, como formas esporádicas, tem sido
muito pouco estudada. De uma forma geral, as AH apresentam uma prevalência
entre 1 caso a 17.8 casos por 100.000 pessoas em diferentes estudos publicados [GUDMUNDSSON,
1969; POLO et al., 1991; MORI et al., 2001].
Van de Warrenburg et al.
publicaram importante estudo em 2002, avaliando a prevalência de ataxias
cerebelares autossômicas dominantes e encontraram uma média de três casos para
cada 100.000 habitantes [VAN DE WARRENBURG et al., 2002].
Várias classificações já
foram utilizadas para as AH, tendo como base, dados clínicos, neuropatológicos
e mais recentemente genéticos. Uma das primeiras classificações, a de Gordon
Holmes, separava as AH em: 1) de início precoce - ataxia de Friedreich e 2) de
início tardio – ataxia de Marie, enfatizando desta forma os dois tipos mais
comuns, a ataxia de Friedreich, de início na infância, com herança autossômica
recessiva e a de Marie, que englobava todas as formas de ataxias de início
tardio e com herança geralmente autossômica dominante.
Entretanto, a mais
estruturada e mais conhecida de todas é a de Harding, que agrupou as ataxias
hereditárias e as paraplegias em diferentes tipos, classificando-as em afecções
congênitas de etiologia desconhecida, as ataxias com defeito metabólico
conhecido (como a ataxia telangiectasia), as ataxias de origem desconhecida
(com início precoce, como a ataxia de Friedreich, e as de início tardio, com
diferentes subtipos) e as paraplegias (formas puras e complicadas) [HARDING,
1984].
Tabela
1- Classificação das ataxias hereditárias e paraplegias, segundo Anita Harding,
1984
I.
Afecções congênitas de etiologia desconhecida ou outras causas
II.
Afecções atáxicas com defeito metabólico conhecido ou outras causas afecções
metabólicas
Afecções por defeito de
reparação do DNA
Ataxia telangectasia
III.
Afecções atáxicas de etiologia desconhecida
Ataxia cerebelar de início
precoce (<20 anos)
Ataxia de Friedreich
Ataxia cerebelar de início
tardio (>20 anos)
Ataxia cerebelar autossômica dominante
Tipo I
Tipo 2
Tipo 3
Tipo 4
Ataxia autossômica dominante
periódica
IV.
Paraplegia espástica hereditária
Paraplegia espástica “pura”
Paraplegia espástica
complicada
A classificação de Harding
separa as ataxias hereditárias de início precoce (quando iniciam antes dos 20
anos), que inclui a ataxia de Friedreich, as ataxias congênitas, associadas a
distúrbios metabólicos e a defeitos de reparação do DNA, como a ataxia
telangiectásica, e as ataxias de início tardio, que englobam as ataxias cerebelares autossômicas dominantes
(ACAD). As ACAD são subdivididas, segundo Harding, nos tipos 1, 2, 3 e 4. O
tipo 1 caracteriza-se por apresentar, associada à ataxia cerebelar, atrofia
óptica, oftalmoplegia, demência, amiotrofia e a sinais extrapiramidais. O tipo
2 apresenta degeneração de retina, podendo associar-se a oftalmoplegia e sinais
extrapiramidais. O tipo 3 seria uma forma de ataxia cerebelar “pura”, enquanto
o tipo 4 estaria associada com surdez e presença de mioclonia [HARDING,
1984].
De uma forma geral, as ataxias
hereditárias podem ser separadas, de acordo com a herança genética em:
• AH Autossômicas
Recessivas;
• AH Autossômicas
Dominantes;
• AH ligadas ao cromossoma
X;
• AH Mitocondriais.
As ataxias espinocerebelares
(AEC) têm uma incidência de cerca de 1 a 5 casos para cada 100.000 habitantes [GUDMUNSON,
1969; PULST, 2003 a]. A doença de Machado-Joseph, também chamada
de ataxia autossômica dominante tipo 3, ou ainda como é mais conhecida ataxia
espinocerebelar tipo 3 (AEC 3), é a forma de AH com herança autossômica dominante,
mais comumente encontrada nos principais estudos epidemiológicos mundiais e a
forma mais comum de AEC encontrada no Brasil [SILVEIRA et al.,
1996; CAMARGO et al., 2000; JARDIM, 2001 a; SUBRAMONY & FILLA, 2001; PULST,
2003 a; TEIVE et al., 2004].
As AEC apresentam como
manifestações clínicas mais comuns, a ataxia de marcha e também apendicular
(dismetria, disdiadococinesia de membros, tremor intencional), disartria e
nistagmo. Outras manifestações clínicas incluem oftalmoplegia, disfagia, sinais
piramidais, síndrome do neurônio motor inferior, disfunção cognitiva, epilepsia,
distúrbios visuais e distúrbios do movimento (parkinsonismo, distonia,
mioclonia e coréia) [HARDING, 1984; ARRUDA et al., 1991; ARRUDA
& CARVALHO NETO, 1991; UITTI , 1994; KLOCKGETHER, 2000 a,b; PULST, 2003 a].
De uma forma geral, a maior
parte das AEC é causada por mutações caracterizadas pela presença de um
trinucleotídeo CAG (em pelo menos 7 tipos de AEC), repetido, expandido e
instável na região codificada do gene. O produto do gene é uma proteína chamada
de ataxina. Esta proteína contém aminoácidos com glutamina, sendo estas
enfermidades conhecidas na atualidade como doenças da poliglutamina [PULST,
2003].
A proteína mutante, ataxina, tem uma função tóxica que desencadeia o processo
degenerativo, com a formação de inclusões nucleares, particularmente nas
células de Purkinje do cerebelo, com uma clara participação da via proteosômica
da ubiquitina, bem como do sistema de proteínas conhecidas como “acompanhantes”.
Em resumo, as doenças neurodegenerativas relacionadas à poliglutamina são
caracterizadas pela expansão de um trato de poliglutamina dentro da proteína
mutante causadora da enfermidade. A expressão da proteína mutante induz a uma
perda progessiva da função neuronal e a subseqüente neurodegeneração de um
grupo específico de neurônios próprios de cada doença [ZOGHBI,
1998; ZOGHBI & ORR, 2000; ORR, 2003; EVERETT & WOOD, 2004]
Uma característica
particular desses tipos de AEC é o fenômeno da antecipação, ou seja, o início
do quadro clínico mais precoce, e mais intenso, em sucessivas gerações nas
famílias afetadas. O fenômeno da antecipação está correlacionado com o número
de expansões do CAG repetido [KLOCKGETHER, 2000 a,b;PULST, 2003 a]
As ataxias espinocerebelares
autossômicas dominantes, hoje mais conhecidas como AEC, apresentam várias
características gerais:
1) Herança autossômica
dominante: ou seja, existem pacientes afetados em todas as gerações, sem
distinção de sexo e com uma média de acometimento dos descendentes de um
paciente afetado ao redor de 50% [KLOCKGETHER, 2000 a,b;
PULST 2003 a].
2) Presença de ataxia
cerebelar, predominantemente de marcha, com início, em geral, após a vida
adulta (acima dos 20 anos de idade), que pode ser acompanhada de diferentes
manifestações, como, por exemplo: oftalmoplegia, nistagmo, movimentos sacádicos
lentos, atrofia óptica, degeneração de retina, fasciculações de face e de
língua, mioquimia facial, distonia, parkinsonismo, coréia, sinais piramidais,
amiotrofia, disfunção cognitiva, neuronopatia sensitiva, crises epilépticas e
retração palpebral (com “bulging eyes”) [KLOCKGETHER, 2000 a,b;
EVIDENTE, 2000; MARGOLIS, 2002; PULST 2003 a].
3) A origem étnica do
paciente pode eventualmente ajudar na investigação das diferentes AEC, como,
por exemplo, a descendência portuguesa-açoriana, na DMJ, a espanhola (na AEC do
tipo 2), a italiana (na AEC do tipo 1), a japonesa (na Atrofia
dentatorubropalidoluysiana) [BÜRK et al., 1996; TEIVE, 1997b, 1998;
KLOCKGETHER et al., 1998; KLOCKGETHER 2000 a,b; EVIDENTE et al., 2000;
MARGOLIS, 2002; PULST, 2003 a].
4) Os exames de neuroimagem,
particularmente a ressonância magnética, podem demonstrar a atrofia do
cerebelo, da ponte, eventualmente das olivas, ou mesmo do tronco encefálico, em
graus variados. Os achados de neuroimagem, contudo, não permitem uma
diferenciação correta nosológica entre os diferentes tipos de AEC [BÜRK
et al., 1996; TEIVE, 1997, 1998; KLOCKGETHER et al., 1998, KLOCKGETHER, 2000
a,b; EVIDENTE et al., 2000; MARGOLIS, 2002; PULST, 2003 a].
5) O estudo
anátomo-patológico também não permite, na maioria das vezes, um diagnóstico
nosológico adequado entre as diferentes AEC [BÜRK et al., 1996; TEIVE,
1997, 1998; KLOCKGETHER et al., 1998; KLOCKGETHER, 2000 a,b; EVIDENTE et al.,
2000; MARGOLIS, 2002; PULST, 2003 a].
6) Não há, até o momento,
tratamentos definidos para as diferentes formas de AEC (excetuando-se algumas
formas raras de AEC episódica que podem responder ao uso de acetazolamida),
existindo, entretanto, inúmeros relatos de testes terapêuticos, com medicações
colinérgicas, serotoninérgicas, gabérgicas e também dopaminérgicas [KLOCKGETHER,
2000 a,b; EVIDENTE 2000; MARGOLIS 2002; PULST, 2003 a].
7) Algumas das principais
AEC já definidas geneticamente apresentam como característica básica a presença
de mutações com um trinucleotídeo (CAG) repetido, expandido, e instável, na
região codificada do gene específico. Sabe-se que o produto genético oriundo da
mutação, em verdade uma proteína definida como ataxina, com a presença de
tratos de glutamina, produziria um ganho de função e, subseqüentemente, levaria
a uma degeneração neuronal específica. Na atualidade, define-se este grupo de
AEC como doenças do trato de poliglutamina [KLOCKGETHER, 2000 a,b;
EVIDENTE 2000; MARGOLIS 2002; PULST, 2003 a].
8) Um dos aspectos de grande
importância nestas doenças que apresentam um CAG expandido é o fenômeno da
antecipação genética, ou seja, em gerações sucessivas, pode ocorrer o início
mais precoce da enfermidade, com um aumento da gravidade da mesma, decorrente
de um aumento do número de repetições do trinucleotídeo expandido. Por razões
ainda não bem conhecidas a antecipação é freqüentemente mais encontrada com a
transmissão paterna do que com a materna [KLOCKGETHER, 2000 a,b;
EVIDENTE 2000; MARGOLIS 2002; PULST, 2003 a].
9) A AEC do tipo 8 é uma
exceção conhecida, sendo a primeira AEC dominante causada pela expansão
repetida de um trinucleotídeo CTG [KLOCKGETHER, 2000 a,b;
EVIDENTE 2000; MARGOLIS 2002; PULST, 2003 a].
10) A AEC do tipo 10 é uma
forma de AEC causada pela expansão de um pentanucletídeo ATTCT [KLOCKGETHER,
2000 a,b; MARGOLIS 2002; PULST, 2003 a].
11) As AEC podem ser
subdivididas, na atualidade, como doenças de poliglutamina (proteínas com
tratos tóxicos de poliglutamina), canalopatias (como as formas de AEC
episódicas) e transtornos de expressão dos genes (expansões repetidas
localizadas fora das regiões de codificação) [MARGOLIS, 2002].
12) Uma das grandes
dificuldades para o estudo das AEC é a heterogeneidade fenotípica e genotípica,
o que pode dificultar sobremaneira o diagnóstico clínico das diferentes tipos
de AEC [BÜRK
et al., 1996; TEIVE, 1997, 1998; KLOCKGETHER et al., 1998, KLOCKGETHER 2000
a,b; EVIDENTE et al., 2000; PULST, 2000; MARGOLIS, 2002; PULST, 2003 a].
Autor: Hélio Afonso Ghizoni
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